domingo, 13 de dezembro de 2009

As Novas Roupas do Bispo Clemente

Parece-me sintomático que o júri que atribuiu o Prémio Pessoa ao bispo católico Manuel Clemente justifique o seu acto referindo-se antes de tudo à "sua intervenção cívica," a qual, segundo os mesmos, "tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, do combate à exclusão e da intervenção social da Igreja [Católica]."

Igualmente sintomático é o facto de, no artigo do Público a que me refiro, a menção às obras escritas do bispo serem remetidas para a segunda parte da notícia.

Numa outra notícia tomamos conhecimento dos comentários laudatórios dos políticos a quem o Público pediu que escrutinassem a escolha do júri. Para além de me parecer estranho que o jornal decida sondar a opinião de políticos de todos os quadrantes sobre a escolha do júri do Prémio Pessoa, registo igualmente o facto de o mesmo jornal não se ter dado ao trabalho de sondar as opiniões de escritores, artistas e cientistas. Recearia não colher reacções tão favoráveis dos notáveis da literatura, da arte e da ciência quanto as recolhidas junto dos políticos, sempre tão interessados em não alienar a grande fatia do eleitorado que ainda se rege pela cruz?

A juntar à estranheza, acresce o facto de nenhum dos interpelados se ter lembrado de mencionar pelo menos um dos livros do bispo Manuel Clemente, uma obra marcante que lhe tenha ficado na memória. Curiosamente, o único dos muitos elogios prodigalizado pelos entrevistados que se refere directamente aos supostos objectivos do Prémio Pessoa vem de Paulo Rangel. Mas, curiosamente, Rangel escolhe elogiar não Clemente mas a sua igreja ao referir-se ao " papel cultural e intelectual da Igreja Católica em Portugal."

Eu, que, confesso, não costumo correr às livrarias para ler o que os sacerdotes da igreja de Roma publicam, confiava que ilustres católicos como Rangel soubessem esclarecer-me dos méritos literários ou artísticos de um dos seus homens do hábito. Isto porque presumo que os feitos de Clemente não estarão no domínio científico, um domínio do qual, mesmo em Portugal, a teologia, na qual Clemente é doutorado, não faz parte. (Mas, quem sabe, talvez, seja Clemente um cientista amador -- estou aberto a tudo menos a perpetuar a minha ignorância sobre Clemente, que descubro tão distinto.)

Afinal, uma consulta ao site do Prémio Pessoa esclarece-nos do que julgávamos saber: que o Prémio Pessoa se destina a reconhecer "uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do país."

Talvez as maiores obras literárias de Clemente e as suas maiores realizações artísticas sejam tão óbvias e universalmente conhecidas que apenas o tardio reconhecimento do Prémio Pessoa seja notícia. Talvez apenas pessoas ignorantes como eu desconheçam as geniais inovações artísticas e literárias (e, quiçá, talvez até mesmo científicas) prodigalizadas por Clemente.

Além de tudo isto, mas centralmente no que do pronunciamento do júri e dos comentários dos mais ilustres observadores se cita, são os méritos éticos, morais, sociais, cívicos e até mesmo religiosos do bom bispo que mais enchem a boca do mundo.

Talvez algum articulista piedoso nos dias vindouros se lembre dos pobres de espírito como eu e do exemplo do bom bispo, que dizem ter-se ilustrado na luta contra a "exclusão," e venha esclarece-nos a nós, os menos inteligentes e menos cultivados, sobre os grandes feitos literários do bispo Clemente.

Entretanto, e em sinal do quanto teria aprazido a Fernando Pessoa a escolha do júri de um Prémio que julgou por bem ornar-se do seu nome, deixo aqui umas palavras que o poeta confiou ao papel (e não aos Portugueses que o rodeavam) por volta de 1910:

"De todos os sistemas filosóficos que se sabe serem falsos, o sistema Cristão é o mais coerente. Num instante cai pela base -- um golpe de raciocínio derruba-o. Mas ainda não existe nesta terra quem seja capaz de vencer o seu grande expositor, Tomás de Aquino, em todos os pontos." (Obras de Fernando Pessoa, Vol. III, Lello & Irmão, Porto, 1986, p. 240.)

O mesmo, estou certo, se dirá no futuro de Clemente.